O início do cristianismo e da Igreja foi conturbado por fora e por dentro. Por fora a perseguição romana e a sinagoga instigada pelos sacerdotes de Jeová, e por dentro os conflitos doutrinários. Os cristãos judaizantes queriam forçar os gentios a circuncidar-se e andar conforme a lei. Paulo era frontalmente contra. “Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão nem a incircuncisão tem virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura” (Gl. 6:15). “O velho testamento foi por Cristo abolido” (2 Co. 3:14). Ensinava aos judeus que estavam entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo-lhes que não deviam circuncidar-se (At. 21:21,28). Chamava o concerto da lei de ministério da morte e da condenação em 2 Co. 3: 6-9. Ensinava que a lei era coisa de anjos (Gl. 3:19).
No início da Igreja tudo era novo, e os cristãos oravam e estudavam de dia e de noite na esperança de descobrir verdades ocultas. Paulo disse “Falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos tempos dos séculos” (1 Co. 2:7).
Nesse cenário surge Marcion, nascido no fim do primeiro século ou início do segundo, filho do Bispo de Sinope. Tornou-se comerciante e viajava com frequência à Roma por motivo de negócios. Em Roma se comportou como um cristão fervoroso, contribuindo com grandes somas de dinheiro para a manutenção da obra. Escreveu um livro intitulado “ANTÍTESES”, onde expunha idéias teológicas que chocavam com a opinião oficial. Sua obra foi inteiramente destruída, e o que sabemos, foi pelo que escreveu Tertuliano em suas refutações, em cinco volumes (160 a 240). Marcion, em sua doutrina, fazia diferença entre o Deus supremo, oculto, inacessível, bom, perfeito, inefável e incompreensível, etc., e outro a quem também chamavam Deus, ainda que não era propriamente, mas é o demiurgo. Este é em realidade uma espécie de anjo ou potência sobrenatural inferior (primeiro na escala descendente) e se denomina a si mesmo como único Deus. O Deus desconhecido, o Deus da bondade e da salvação, só pode ser conhecido em Jesus (Jo. 8:19). Este deus vingativo os judeus chamavam Jeová (Yahvé). Marcion rechaçava este deus por sua crueldade — era amante dos holocaustos sangrentos e ordenava as matanças humanas (Na. 1:2-15; 14:2; Gn. 6:7; Ex. 12:23,29 etc.). O Deus Pai é Espírito, e Jeová é alma (Am. 6:8 e Jo. 4:24). Para Marcion um era o Cristo, Filho do verdadeiro Deus, aparecido em Cafarnaum nos tempos de Tibério, e outro, o Messias, filho do criador, que deveria vir, mas não veio. O Messias ou Cristo animal, puro homem, da família de Davi, destinado somente ao povo israelita, que os arrancaria da diáspora para dar-lhes unidade e poder sobre todos os reinos deste mundo. Seu reino seria marcado pela violência (Sl 2:6-9). Este Messias terreno nunca veio e não se cumpriram as profecias. Paulo explica que o Messias, o Filho unigênito do Pai, não foi gerado na encarnação, mas na ressurreição (Rm. 1:3-4). O próprio Jesus Cristo negou ser o Messias judeu afirmando que o seu reino não era deste mundo (Jo. 18:36). Marcion provou que o deus do Velho Testamento era néscio, pois não era onisciente, atributo indispensável ao Deus verdadeiro. Jeová desceu até Sodoma para ver se a corrupção reinante era verdade ou não (Gn. 18:20-21). Jeová levou Israel ao deserto, e o tentou, para saber o que estava no coração do povo, se guardariam os mandamentos ou não (Dt. 8:2). O rei Ezequias mostrou aos mensageiros do rei da Babilônia os tesouros da casa de Jeová, e Jeová o desamparou para saber o que havia no seu coração (2 Rs. 20:12-14; 2 Cr. 32:31). Se Jeová sabia que Jó, em suas impiedosas provações, ia permanecer fiel, foi cruel e sádico, entregando-o nas mãos de Satanás para prová-lo (Jó 1:6-21; 2:1-9).
Marcion separava os dois testamentos. A lei e os profetas se caracterizavam pelo temor, não pela justiça rigorosa, não pelo amor, pela misericórdia e benignidade, pelo exterior e sensível, não pelo interior e espiritual; por um nacionalismo provinciano, não pelo universal. Um era o deus de Israel, e outro o Deus de todos (Ef. 4:6). “A lei e os profetas duraram até João Batista, desde então é anunciado o reino de Deus.” (Lc. 16:16). O reino de Deus não faz parte do Velho Testamento, segundo Lucas. O Novo Testamento nos trouxe uma dispensação totalmente nova: novo Deus, novo Filho, novo Espírito, nova Igreja, nova lei. Jeová cegou Israel com o Velho Testamento, pois os hebreus, continuadores do Velho Testamento e antigo regime, presos a Moisés e aos profetas, não tiveram olhos para crer em Jesus Cristo e seu Evangelho. O choque entre os dois testamentos, entre Jeová e o Deus bom, teve lugar entre os filhos de Jeová, escribas e fariseus, e o filho de Deus. A bondade e a misericórdia foram crucificadas com Jesus, e triunfou o aparato da antiga justiça (Jo. 12:37-41).
Marcion é considerado o maior herege do início da Igreja. Os cristãos do século um e dois se tornaram adversários de Marcion e conseguiram queimar e destruir tudo o que ele escreveu. O que sabemos a seu respeito, nos veio pelas refutações de Tertuliano. Está provado que quem combate uma doutrina, o faz com uma ótica particular, que não corresponde à realidade. Temos um exemplo atual. De 1950 para cá, explodiu o movimento pentecostal, que assustava os cristãos tradicionais com o Batismo no Espírito Santo, curas, profecias e línguas estranhas. As três denominações evangélicas que dominavam o cenário protestante no Brasil se opuseram violentamente, orientados pelos pastores, todos diplomados em teologia. Desencadearam uma guerra contra os avivados. Este que escreve este documentário foi convidado a se retirar da Igreja Batista que frequentava, a não ser que negasse as profecias, línguas estranhas, curas e batismo com Espírito Santo. Eram escritos artigos contra os pentecostais nas revistas evangélicas. Parecia uma inquisição. Passaram-se 50 anos, e hoje os batistas tradicionais estão de braços dados com os batistas pentecostais. Isto prova que a teologia estava errada. O mesmo fato irá acontecer novamente, pois os crentes estabeleceram como base da salvação crer em Jeová. Se uma pessoa crê em Jesus e não crê em Jeová é herege e apóstata, mas na Bíblia não está escrito que quem tem o Pai tem o Filho. O que está escrito é que quem tem o Filho tem também o Pai. Marcion, por exemplo, seus seguidores tinham um padrão moral elevadíssimo, apartando-se do mundo, pois esperavam a volta de Jesus nos seus dias, e este mundo está condenado ao fogo, conforme 1 Ts. 5:1-8; 2 Pd. 3:7-13. Repudiavam os prazeres terrenos, vivendo em jejum e oração e não aceitavam segundas núpcias, mas porque não aceitavam o irado Jeová, foram excomungados como hereges. Hoje, os que condenam Marcion só tocam Rock, são viciados em futebol, cinema e televisão, tomam pílula anticoncepcional e se divorciam para contrair novas núpcias. Jesus ensinou que, antes de repararmos o argueiro do olho do nosso próximo, devemos reparar a trave do nosso olho (Mt. 7:3).
Autoria Pastor Olavo S. Pereira
Bibliografia – Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
Cristologia Gnóstica Volume 1 – B A C
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